O termo pré-diabetes é utilizado para descrever uma condição metabólica caracterizada por níveis elevados de glicemia que não atingem os critérios diagnósticos de diabetes. Estima-se que mais de um terço da população adulta nos EUA apresente pré diabetes, definido por HbA1c entre 5,7% e 6,4% ou glicemia de jejum (GJ) entre 120 e 125 mg/dL, segundo os critérios da American Diabetes Association (ADA). Embora a progressão do pré-diabetes para diabetes tipo 2 seja bem documentada, o impacto isolado do pré-diabetes nos desfechos clínicos, independentemente dessa progressão, permanece incerto.
Estudos prévios mostraram que o pré-diabetes está associado a riscos aumentados de complicações microvasculares e macrovasculares, incluindo doença cardiovascular aterosclerótica (ASCVD), insuficiência cardíaca (IC), doença renal crônica (DRC) e mortalidade por todas as causas. No entanto, não se sabe até que ponto esses riscos são explicados pela progressão para diabetes ou se o pré-diabetes, por si só, confere um estado de risco elevado.
Para tentar esclarecer essa lacuna, foi realizada uma investigação através de uma coorte prospectiva sobre o risco de complicações clínicas associadas ao pré-diabetes. Devido a importância do tema, o estudo foi publicado na revista Diabetologia, periódico da EASD (European Association for the Study of Diabetes).
Métodos
O estudo utilizou dados da coorte prospectiva “Atherosclerosis Risk in Communities” (ARIC), composta por 15.792 participantes recrutados entre 1987 e 1989 em quatro comunidades nos Estados Unidos. A análise incluiu 10.310 indivíduos sem diabetes ao início do acompanhamento (1990–1992).
Os participantes foram acompanhados por até 30 anos (até 2020). Os critérios de inclusão foram HbA1c <6,5%, glicemia de jejum < 126 mg/dL e ausência de complicações cardiovasculares ou renais prevalentes no início do estudo.
Os participantes foram acompanhados para avaliar a incidência de complicações macrovasculares (doenças ateroscleróticas cardiovasculares, ou, do inglês, ASCVD; ou insuficiência cardíaca), microvasculares (DRC) e mortalidade por todas as causas. O impacto do pré-diabetes foi analisado por meio de modelos de regressão de Cox, ajustados para idade, sexo, fatores cardiometabólicos basais e diabetes incidente, considerado como uma variável dependente do tempo.
A população tinha uma média de idade de 57 anos, sendo composta em 56% por mulheres, 19% negros. Vale destacar que cerca de 60% dos participantes apresentavam pré-diabetes de base. Esses indivíduos eram mais propensos a serem homens, negros, obesos (IMC médio de 28,1 vs. 25,9 kg/m²) e apresentarem um perfil cardiometabólico desfavorável, incluindo maiores taxas de hipertensão e dislipidemia.
Resultados
O pré-diabetes foi associado a maior risco de complicações clínicas. Dentre todos os participantes, durante os 30 anos de acompanhamento, ocorreram 7.069 eventos totais incluídos na análise, sendo 1.937 casos de ASCVD, 2.109 de insuficiência cardíaca, 3.288 de DRC e 4.785 óbitos.
Houve progressão para diabetes em cerca de 30% dos indivíduos com pré-diabetes, com tempo mediano de 7 anos para a evolução.
Contudo, o que mais chamou a atenção no estudo foi de fato o resultado principal: mesmo após ajuste para progressão ao diabetes e fatores de risco basais, o pré-diabetes se manteve associado a riscos significativamente maiores de complicações clínicas comparado àqueles em normoglicemia. Mesmo após contabilizar a progressão para diabetes, aproximadamente 85% do risco residual de complicações em indivíduos com pré-diabetes permaneceu, indicando que a maioria das associações entre pré-diabetes e complicações é de fato independente do desenvolvimento de diabetes.
Incidência cumulativa de complicações
– Complicações Totais: 77% nos indivíduos com pré-diabetes vs. 68% naqueles com normoglicemia; HR 1,21 (IC 95%: 1,15–1,27)
– ASCVD: 23% no pré-diabetes vs. 18% na normoglicemia; HR 1,38 (IC 95%: 1,25–1,52).
– Insuficiência Cardíaca: 25% no pré-diabetes vs. 18% na normoglicemia; HR 1,37 (IC 95%: 1,25–1,51).
– DRC: 36% no pré-diabetes vs. 32% na normoglicemia; HR 1,25 (IC 95%: 1,16–1,34).
– Mortalidade por Todas as Causas: 56% no pré-diabetes vs. 43% na normoglicemia; HR 1,23 (IC 95%: 1,15–1,30).
Os resultados desse estudo mostram que o pré-diabetes, além de ser um estado de risco elevado para diabetes, está associado a um risco substancial de complicações clínicas, mesmo na ausência de progressão ao diabetes. Isso sugere que o pré-diabetes reflete uma disfunção metabólica mais ampla que contribui para doenças cardiovasculares, renais e aumento da mortalidade. Novos estudos podem auxiliar no entendimento sobre a relação progressiva entre hiperglicemia e tais complicações, uma vez que não parece se tratar de uma dicotomia entre ter ou não diabetes, e sim de um desfecho contínuo – quanto menor a glicemia, menores os riscos.
Intervenções precoces são cruciais para mitigar esses riscos. Modificações no estilo de vida, como aumento da atividade física e perda de peso, mostraram reduzir a progressão para diabetes em até 58% em estudos clínicos. Além disso, terapias farmacológicas, como metformina, podem ser consideradas em populações de maior risco, incluindo indivíduos obesos ou com histórico de diabetes gestacional.
O estudo também destaca a necessidade de rastreamento e manejo intensivo de fatores de risco cardiovascular em pessoas com pré-diabetes. O controle rigoroso da pressão arterial, o uso de estatinas e, potencialmente, terapias como agonistas do receptor GLP-1 e inibidores de SGLT2 podem desempenhar um papel na redução dos desfechos adversos.
Perspectivas
Os achados deste estudo destacam a importância de considerar o pré-diabetes como uma condição de risco por si só, independentemente da progressão para diabetes. A abordagem preventiva deve incluir rastreamento regular, intervenções no estilo de vida e, quando apropriado, manejo farmacológico. Essas estratégias podem reduzir a progressão para diabetes, e, quem sabe, também a carga de complicações cardiovasculares, renais e de mortalidade associadas ao pré-diabetes. Este último tópico fica como um assunto a se esclarecer: se o tratamento da condição pode impactar positivamente na mitigação desses desfechos.
Embora robusto, o estudo apresenta limitações como possíveis subnotificações de diabetes incidente durante o acompanhamento e a incapacidade de capturar mudanças no status glicêmico ao longo do tempo, que pode ter deixado alguns “diabéticos não diagnosticados” “infiltrar” os dados e influenciar os resultados. Além disso, a análise foi limitada a participantes brancos e negros, restringindo a generalização para outras populações. Logo, estudos parecidos, porém em populações mais diversificadas são necessários para expandir a aplicabilidade clínica desses achados.
Mas vale a mensagem: mesmo níveis mais modestos de hiperglicemia, hoje denominados como pré-diabetes, podem aumentar o risco de complicações clínicas ao longo da vida.
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