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Endocrinologia10 dezembro 2024

Discutindo as limitações no uso e o mau uso do T3 no hipotireoidismo

Revisão narrativa abordou as evidências e riscos do uso do T3 e possíveis abordagens alternativas para o manejo do hipotireoidismo com sintomas persistentes

Não é de hoje que se discute diferentes formas de tratamento para o hipotireoidismo. Apesar de existir um tratamento eficaz e seguro, que é a reposição do hormônio T4 através do uso da levotiroxina, vemos diversas abordagens que ou carecem de evidência científica robusta ou que são definitivamente comprovadas como não eficazes, como por exemplo o uso de lugol como “modulador” ou de extrato de tireoide bovina.  

A ideia que permeia a busca por novos tratamentos está na persistência de sintomas apesar do uso da levotiroxina, mesmo com TSH e T4 na meta terapêutica. O percentual varia de acordo com a fonte, mas estima-se que cerca de algo entre 10 e 30% dos pacientes tratados para hipotireoidismo apresentem sintomas inespecíficos, como fadiga ou dificuldade de concentração, mesmo com controle bioquímico adequado. Estudos internacionais sugerem que transtornos somáticos e personalidades do tipo D são fatores contribuintes em até 58% desses casos. Devido a inespecificidade desses sintomas, a associação causal é de difícil realização. 

Dentro dessa discussão, uma opção que sempre surge nas discussões é o uso da liotironina (T3) como parte da terapia combinada (T4 + T3). Tal prática é controversa, desafiando as diretrizes clínicas e as evidências científicas. Embora alguns pacientes relatem alívio de sintomas persistentes com liotironina, estudos randomizados não demonstram benefícios consistentes em comparação à monoterapia com levotiroxina (T4).  

Devido à importância do tema, trazemos à discussão uma revisão narrativa sobre as evidências e riscos do uso do T3 e possíveis abordagens alternativas para o manejo do hipotireoidismo com sintomas persistentes. 

Leia mais: T3 no tratamento do hipotireoidismo: novas evidências.

hipotireoidismo

Evidências a favor do uso da LIOTIRONINA (T3) 

Relatos de pacientes e estudos observacionais 

Um dos fatores que incentiva o uso do T3 é o relato de pacientes que não respondem adequadamente à monoterapia com levotiroxina e que relatam melhora em sintomas como fadiga, “névoa cerebral” e alterações de humor após a introdução de liotironina. Contudo, deve se ter muito cuidado no viés de informações individuais e não controladas, pela dificuldade em se estabelecer uma relação causal. 

Hipótese do baixo T3 tecidual: 

Estudos em modelos animais sugerem que a conversão periférica de T4 em T3 pode não ser suficiente para atender às necessidades metabólicas de todos os tecidos. Em teoria, a administração de T3 poderia corrigir essas deficiências.  Além disso, alguns estudos observacionais destacam que uma parcela dos indivíduos com sintomas persistentes pode apresentar deficiência de T3 tecidual, que embora rara, seria adequadamente tratada com liotironina. 

Uso seletivo em subgrupos de pacientes 

Casos isolados de pacientes com polimorfismos genéticos em genes relacionados à deiodinase tipo 2 (DIO2) mostraram maior resposta à terapia combinada. No entanto, essas condições genéticas são raras e frequentemente superestimadas. 

Evidências contra o uso da LIOTIRONINA (T3)? 

Evidências contra o uso do T3 

O primeiro ponto contra o uso do T3 é central, que é a falta de eficácia demonstrada em ensaios clínicos randomizados (RCTs) e revisões sistemáticas/metanálises. Na revisão, o autor destaca uma metanálise de 19 ensaios randomizados controlados (RCTs) sobre o tema evidenciando não haver superioridade da terapia combinada sobre a monoterapia com T4 na melhora de sintomas persistentes ou na qualidade de vida. Ainda, outros estudos prospectivos demonstram que nem os níveis séricos de T3 nem as alterações nesses níveis correlacionam-se consistentemente com sintomas persistentes em pacientes tratados com levotiroxina. 

Riscos 

Além da pouca evidência favorável ao uso do T3, devemos considerar os riscos associados ao excesso de hormônios tireoidianos, levando à supressão do TSH. Essa situação é sabidamente associada a maior risco de insuficiência cardíaca, acidente vascular cerebral (AVC), osteoporose e mortalidade. Um estudo coreano realizado em 2022 demonstrou, em uma análise de propensão, que o uso prolongado de liotironina (por mais que 52 semanas) foi associado a um aumento significativo no risco de insuficiência cardíaca (HR 1,42; IC 95%: 1,10–1,83) e AVC (HR 1,51; IC 95%: 1,18–1,94) em comparação com T4 isolado. 

Limitações da hipótese do baixo T3 tecidual 

A maioria dos pacientes com sintomas persistentes apresenta níveis séricos normais de T3. A quantificação do T3 tecidual de fato é algo que não é prático. Ainda, a variabilidade nos sintomas frequentemente está mais relacionada a fatores psicológicos ou comorbidades do que a deficiência hormonal.  

Influência de fatores não científicos e pressão dos pacientes 

A demanda advinda dos próprios pacientes devido à informações incorretas online e pressão causada pelos mesmos frequentemente levam médicos a prescrever liotironina, apesar da falta de evidências robustas. 

Considerações 

As diretrizes clínicas atuais, que permitem o uso de liotironina em casos raros, vem sendo interpretadas de forma ampla, promovendo o aumento de prescrições sem evidências. Diante do exposto, há poucos dados que corroboram o uso de T3 na prática clínica, sobretudo de forma ampla para qualquer paciente com sintomas inespecíficos e hipotireoidismo.  

O autor da revisão destaca a importância da exclusão de comorbidades e a abordagem centrada no paciente, incluindo suporte psicológico e educação sobre expectativas terapêuticas, que são fundamentais para pacientes com sintomas persistentes, dado que tais sintomas podem advir de outra condição associada e não porque o hipotireoidismo em si não está bem controlado. 

Conclusão e mensagem prática 

Com base nos dados atuais, a terapia combinada deve ser reservada para casos documentados de deficiência comprovada de T3 tecidual ou em subgrupos raros com alterações genéticas que afetem a conversão de T4 em T3. Tais situações são realmente raras. Novos ensaios clínicos randomizados, com populações maiores, bem selecionadas e com desfechos clínicos relevantes podem trazer maior assertividade à questão. 

É fundamental que o endocrinologista considere, de fato, a gestão de sintomas persistentes, que deve incluir avaliação psicológica, suporte multidisciplinar e estratégias para manejo de comorbidades, como transtornos somáticos ou autoimunes. 

Na opinião do autor, ainda, as diretrizes clínicas devem ser mais claras e enfáticas sobre as indicações restritas para liotironina, evitando interpretações subjetivas que levem ao uso excessivo, como vem acontecendo atualmente. Embora a liotironina tenha um papel restrito no manejo do hipotireoidismo, o foco deve ser a abordagem individualizada e baseada em evidências, minimizando riscos e maximizando benefícios para o paciente. 

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Referências bibliográficas

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