A estabilização de pacientes vítimas de trauma é feita há décadas conforme o protocolo ABC, que estabelece a padronização sequencial de atendimento (vias aéreas, respiração e circulação).
Evidências recentes questionam essa sequência em traumas exsanguinantes, sugerindo que priorizar o manejo das vias aéreas em detrimento da circulação, nesses casos, poderia contribuir para a piora da hipotensão e aumentar a mortalidade, já que a hemorragia representa uma das principais causas de morte evitável em pacientes vítimas de trauma.
Esses estudos sugerem alterar essa abordagem tradicional ao trauma, modificando ABC pelo CAB (circulação, vias aéreas e respiração), ou XABCs, com o X representando exsanguinação. Com a nova abordagem, o foco inicial seria o controle da hemorragia e ressuscitação, antes do manejo da via aérea e da intubação traqueal.
Uma metanálise publicada no Jornal Mundial de Emergências Cirúrgicas (WJES) no ano de 2025 teve por objetivo avaliar a eficácia da abordagem do CAB em detrimento de ABC em pacientes com trauma com hemorragia severa.
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Métodos
Foi realizada uma revisão sistemática, conduzida de acordo com as diretrizes PRISMA. Os estudos utilizados incluíram estudos observacionais e comparativos que analisaram desfechos de pacientes com hemorragia exsanguinante decorrente do trauma.
As bases de dados utilizadas foram PubMed e Ovid, MEDLINE, SCOPUS, Web of Science e EMBASE, com estudos em língua inglesa e publicados entre janeiro de 2000 a setembro de 2024.
Foi realizada uma meta-análise utilizando o MetaXL (versão 5,3), calculando-se a razão das chances (RC) combinadas para mortalidade, com intervalo de confiança (IC) de 95%, utilizando-se a Escala de Newcastle-Ottawa para avaliação do risco de viés. Estudos prospectivos e retrospectivos foram analisados para comparar abordagens ABC e CAB.
Resultados
Após a busca realizada com as bases de dados, foram incluídos nessa revisão sistemática e meta-análise 6 estudos elegíveis, sendo 2 prospectivos e 4 retrospectivos. A amostra foi composta por 11.855 pacientes com idade igual ou superior a 16 anos, com média de idade de 28 a 44 anos, vítimas de trauma exsanguinante, sendo a maioria do sexo masculino.
A meta-análise evidenciou um aumento da mortalidade com a utilização da abordagem ABC (OR combinado: 3,65, IC 95%: 1,74-7,65). A heterogeneidade entre os estudos foi alta (I² = 92%) p < 0,001.
Na análise de subgrupos nos estudos prospectivos comparando o ABC com CAB, foi observado um risco superior de mortalidade no grupo submetido ao método ABC (RP: 9,99, IC 95%: 5,59-17,85) e esse risco foi estatisticamente maior nesses estudos quando comparados aos estudos retrospectivos (RP: 2,42, IC 95%: 1,08-5,36).
Discussão
Evidências recentes apontam aumento da mortalidade em pacientes que foram intubados antes da abordagem da circulação em casos de hemorragia exsanguinante no trauma.
A explicação seria que, ao realizar a intubação primeiro, exacerbar-se-ia a hipotensão, com comprometimento da função cardíaca, elevando a mortalidade. Isso representa uma mudança de paradigma, já que, historicamente, a sequência ABC representa um pilar no atendimento ao trauma.
A análise de subgrupos dos estudos prospectivos corroborou com essas recentes evidências, demostrando um risco de mortalidade dez vezes superior em pacientes submetidos ao método ABC quando comparados com a abordagem CAB, enfatizando a importância da priorização da circulação nesse grupo de pacientes.
A heterogeneidade observada entre os estudos poderia ser explicada pelas diferenças entre as populações estudadas, nas estratégias de ressuscitação e nos métodos utilizados nos estudos.
A implementação da mudança de abordagem no trauma necessitaria de uma abordagem multidisciplinar, para priorizar a circulação na abordagem inicial desses pacientes em ambos os ambientes, pré e intra-hospitalares, já que mortes por hemorragia ocorrem com certa frequência antes mesmo da chegada do paciente ao hospital.
O manejo da hemorragia seria feito com administração com sangue total ainda durante o transporte, com prioridade dessa medida em relação a intubação, exceto em casos de obstrução grave de vias aéreas ou hipóxia grave.
Essa revisão sistemática e meta-análise defendem essa mudança na abordagem do trauma para a sequência CAB, priorizando o manejo das hemorragias exsanguinantes em relação ao das vias aéreas, devido aos melhores resultados dessa abordagem nos estudos analisados.
As recomendações atuais pelo grupo multidisciplinar de especialistas globais seriam, então, o controle da hemorragia em detrimento da intubação em traumas nos quais o controle do sangramento é fundamental para a sobrevivência.
O manejo da via aérea inicial nesses casos seria feito através de dispositivos não invasivos, como ventilação com ventilação com bolsa-válvula-máscara e oxigênio suplementar. Tais especialistas também recomendam mudanças nos protocolos pré-hospitalares e hospitalares, sendo necessário treinamento das equipes para viabilizar a implementação dessa mudança na abordagem ao trauma, priorizando o controle da hemorragia, a administração de hemoderivados e limitando intervenções desnecessárias em vias aéreas que poderiam exacerbar a hipotensão.
Conclusão
O controle precoce da hemorragia no trauma, através da abordagem inicial da circulação em detrimento do manejo das vias aéreas apresenta melhores desfechos, sendo altamente recomendado, exceto em casos de obstrução de vias aéreas, sendo nesse caso mandatório a intubação. Mais estudos, sobretudo ensaios clínicos randomizados, são necessários para ratificar essas evidências, permitindo a mudança no manejo ao trauma para a sequência CAB em escala global.
Mensagem prática nos casos de traumas exsanguinantes:
1 – Priorizar o manejo da circulação em detrimento a intubação traqueal.
2- Priorizar o controle da hemorragia, a administração de hemoderivados e limitar intervenções desnecessárias em vias aéreas.
3 – Realizar o manejo inicial das vias aéreas através de dispositivos não invasivos, exceto em caso de obstrução grave de vias aéreas ou hipóxia grave.
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