Osteoradionecrose da Mandíbula (ORNM) é definida como exposição óssea da mandíbula previamente irradiada, não cicatrizante por um período superior a 3 meses e sem evidência de neoplasia ativa. A incidência da ORNM atualmente é de 4% – 8% graças à radioterapia de intensidade modulada e a sistemática extração dentária profilática.
Diferentes teorias explicam a fisiopatologia dessa doença envolvendo exposição à radiação e a formação de um tecido hipocelular, hipovascular e hipóxico ocasionando uma falência tecidual local e consequente não cicatrização. O mecanismo envolveria a ativação e desregulação de atividade fibroblástica local secundária a radicais livres, disfunção endotelial, trombose microvascular e inflamação crônica. Esse conjunto de eventos é chamado de processo fibro-atrófico induzido por radiação (RIF) e resulta e um tecido fibroatrófico suscetível a formação de lesões crônicas. Ressalta-se que o local, no caso a cavidade oral, é um ambiente propício à infecção e proliferação polimicrobiana.
Os pacientes podem apresentar trismo, edema, dor e necessidade de sucessivos ciclos de antibioticoterapia com seus consequentes efeitos colaterais. Nos casos avançados há progressão em espessura total do osso, ocasionando fístulas oro-cutâneas, fraturas patológicas crônicas, má oclusão e disfunção motora oral. Esse conjunto de efeitos da ORNM somado à outras possíveis sequelas advindas da neoplasia primária impactam negativamente a qualidade vida desses pacientes e são um desafio à equipe multiprofissional.
Em 1970, Meyer pioneiramente descreveu o tratamento com antibióticos com ou sem desbridamento cirúrgico como opção de tratamento para ORNM, posteriormente em 1983 Marx introduziu a teoria e estadiamento centrado no uso da OxHB e a forma de tratamento se cristalizou sem mudanças significativas até o surgimento da teoria da RIF por Delanian e Lefaix, introduzindo antioxidantes e antifibróticos nos casos não cirúrgicos, com emprego de pentoxifilina, tocoferol (vitamina E) e clodronato (PENTOCLO).
Novas evidências para o manejo de ORN têm jogado luz à conduta consolidada e os autores e uma revisão publicada em 2025 trazem novas perspectivas para uma condução mais assertiva desses pacientes.
Materiais e Métodos
Revisão realizada no PubMED/MEdline, toda literatura publicada até setembro 2024 em língua inglesa relativa a ORNM e cujas palavras chaves incluíram “osteoradionecrose”, “osteonecrose”, “osteomielite”, “mandíbula”, “mandibular” e “cabeça e pescoço”. Na avaliação secundária foram avaliados artigos de estadiamento da ORN e conduta clínica e cirúrgica. Houve pesquisa específica em tópicos como “pentoxifilina”, “tocoferol”, “clodronato” e “terapia com oxigênio hiperbárico”.
Critério de inclusão para seleção de literatura foi: qualquer literatura sobre fisiopatologia, avaliação e manejo de ORNM. Estudo de ORN de sítios diferentes da mandíbula, estudos exclusivos de osteomielite e de animais foram excluídos.
Discussão
Estadiamento tradicional da ORNM
São descritas 9 classificações distintas de ORNM. Por muitos anos a Classificação de Marx, baseada à resposta a OXHB foi a mais utilizada, mas com os recentes questionamentos aos benefícios dessa terapia ela passou a ser substituída pelas Classificações de Schwartz e Kagan e pela de Notani et al. Essas classificações têm em comum descrições de estágios iniciais como áreas de exposição ou sequestro ósseo e estágios avançados como áreas de defeitos de espessura total do osso, fraturas patológicas, fistulização e resistência terapêutica em comum, havendo variação de classificação nos casos intermediários.
Tratamento tradicional da ORNM
O manejo ORN é desafiador e muitas vezes não curativo e são empregues as opções de tratamento conforme o estadiamento da doença e a decisão terapêutica ocorre muitas vezes convencionado pela repetição, sem revisão dos resultados.
Para casos iniciais e moderados além de adequados cuidados de higiene oral são consolidados pelo uso uma conduta inicial expectante e a sequestrectomia ou saucerização precoce para casos selecionados, oxigenoterapia com câmara hiperbárica (OxHB) e terapia medicamentosa direcionada. Nenhuma dessas abordagens conta com respaldo robusto em literatura baseado em ensaios clínicos. Por outro lado, essa conduta conservadora inicial não cirúrgica e não hiperbárica também carece de literatura evidenciando sua eficácia.
Para casos avançados de ORNM, quando houve insucesso na terapia empregada inicialmente e progressão da doença são empregadas ressecções segmentares e reconstrução com retalhos osteocutaneos livres, sendo considerados o padrão-ouro de tratamento, com eficácia relatada de 90%, mas com risco de complicações do retalho de 21%-60% e perda de retalho em até 20% dos casos. Essa conduta implica elevada taxa de complicações, elevado custo e poucos pacientes toleram tais procedimentos na situação de pós-tratamento de neoplasia de cabeça e pescoço.
PENTOCLO (Pentoxifilina+Tocoferol+Clodronato)
Pentoxifilina é um vasodilatador com fator de necrose tumoral, anti-inflamatório e com propriedade anti-agregante plaquetário. Tocoferol é um potente anti-oxidante que reações de radicais livres de oxigênio, além de reduzir inflamação e fibrose tecidual. Nenhuma dessas drogas isoladamente mostrou eficácia curativa na ORNM.
Já a combinação dessas duas drogas acima mostrou algum benefício em trials com número reduzido de pacientes, com resultados variáveis e limitados pela análise subjetiva de desfechos e no estudo que evidenciou maior benefício não houve reprodução dos achados em outros estudos. Um estudo de metanálise com 211 pacientes de 7 estudos distintos, com achado de 62,7% dos pacientes apresentaram completa recuperação ou melhora de sintomas clínicos, diminuição exposição óssea e não necessidade de abordagem cirúrgica e 7,5% dos pacientes apresentam progressão da doença apesar da medicação e alguns dos estudos analisados apresentaram limitações em relação ao seguimento, uso de antibioterapia e corticóides e clodronato e análise radiológica foi feita em apenas 1 estudo.
Clodronato é um bifosfonado de primeira geração que reduz atividade osteoclastica, inibe fibroblasto e proliferação de macrófagos e promove formação óssea através de osteoblastos. Paradoxalmente bifosfonados são associados a osteonecrose de mandíbula, em 2,5% a 27,3% dos pacientes. Uma revisão sistemática de 2018 revelou que estudos sobre uso de PENTOCLO eram de amostras reduzidas, heterogêneos e predominantemente qualitativos. Portanto, diante da literatura atual há ausência de robusta literatura que justifique seu uso.
OxHB
Os trabalhos iniciais que sedimentaram a OxHB para tratamento de ORNM hoje são questionados devido ao tamanho pequeno das coortes, não cegos, a falta de reprodutibilidade e com taxa de sucesso máximas de 15% e a maioria dos pacientes ainda necessitando abordagem cirúrgica.
Estudo recente de 2004, um estudo prospectivo, randomizado, duplo-cego e placebo controlado mostrou não benefício para estágios iniciais e moderados de ORNM e o estudo foi encerrado devido potencial pior evolução no grupo OxHB. Em 2017, foi publicado guildeline e revisão recomendando não utilizar OxHB para ORNM devido falta de literatura de suporte. E outros estudos posteriores reforçaram o não benefício de OxHB para ORNM.
Opções cirúrgicas
Todas as opções cirúrgicas envolvem o desbridamento do tecido ósseo doente até atingir tecido ósseo sadio e sangrante, e subsequente é necessária a reconstrução para cobrir o defeito ou recuperar a continuidade da mandíbula nas ressecções segmentares.
Retalhos livres osteocutâneos são considerados padrão-ouro para ressecções segmentares e as opções para tratamento de lesão não espessura total são limitados, sendo descritos retalhos livres de periósteo e fasciocutâneos com sucesso em séries de casos de até 15 pacientes de até 100%.
Especial menção ao denominado retalho de resgate, no caso o retalho livre de fáscia lata anterolateral (RFLATL) da coxa para tratamento de lesões não espessura total, com sucesso descrito de até 96,2% dos casos, com menor morbidade e garantindo adequado fluxo sanguíneo prevenindo a evolução para ressecções segmentares e necessidade de reconstrução com retalho fibular. Retalho sem tecido ósseo que oferece ao leito após o desbridamento do tecido necrótico, um tecido não irradiado, sadio e rico em fluxo sanguíneo, permitindo uma adequada proteção ao tecido ósseo subjacente. O emprego de enxerto ósseo de crista ilíaca ao RFLATL se baseia em oferecer uma reserva de tecido ósseo local, favorecendo reabilitação dental futura.
Implicações para a prática
Nesse artigo o estadiamento proposto pelos autores é uma adaptação da Classificação de Notani, conforme descrito abaixo:
Estágio I | Confinado à UDA e área exposta < 2,5cm |
Estágio II | Estende além da UDA mas acima CNAI ou confina à UDA e área exposta >2,5cm |
Estágio III | Estende além CNAI mas poupa > 1cm de altura da cortical lingual ou bucal |
Estágio IV | Estende além CNAI + poupa ≤ 1cm de altura da cortical lingual ou bucal sem fratura |
Estágio V | Acomete espessura total ou presença de fratura patológica |
Legenda: UDA: unidade dentoalveolar, CNAI: canal do nervo alveolar inferior |
E baseado nesse estadiamento acima proposto é delineado um algoritmo de tratamento que consiste em adequada avaliação clínica e radiológica, recomenda-se o estadiamento e o início do tratamento deve ser instituído o mais breve possível.
Para casos de infecção recomenda-se antibioticoterapia guiada por resultado de culturas de tecido e o tempo de tratamento de 6 semanas.
Na situação de achado de tecido necrótico o mesmo deve ser retirado e o paciente estar ciente que tal conduta significa aumento do defeito e com consequente necessidade de tratamentos mais invasivos.
Mensagem prática
A ORNM é uma condição mórbida e difícil de tratar, consome tempo e recursos e muitas vezes leva a prejuízo na aderência ao tratamento e ao vínculo com a equipe assistente. Os autores do artigos propõe um novo protocolo de tratamento e nova forma de estadiamento, à luz de evidências atuais afim de otimizar os resultados e evitar condutas sem comprovado benefício aos pacientes, mas ainda em alguns casos cristalizadas pelo uso rotineiro.
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