Coagulopatia induzida por trauma (CIT) possui fisiopatologia complexa com desafios no manejo inicial, onde a espera por resultados de exames de coagulação e viscoelastografia podem atrasar a conduta com impacto direto no desfecho do paciente. Por outro lado, há incertezas do benefício de estratégias agressivas de uso de agentes hemostáticos ou transfusões.
Na Europa são utilizados para o tratamento da CIT concentrados de fatores de coagulação [concentrado de fibrinogênio (CF) e concentrado de complexo protrombínico (CCP)], enquanto na América do Norte a ressuscitação baseia-se na utilização de plasma fresco congelado (PF).
Esses concentrados possuem algumas vantagens em comparação ao uso de PF: têm administração mais fácil e rápida, prazo de validade maior, podem ser armazenados em temperatura ambiente, dispensam equipamento de preparo e podem ser utilizados em regiões remotas. Ainda, não necessitam de tipagem sanguínea, apresentam reduzida patogenicidade e dispensam a necessidade de Plasma AB previamente descongelado e armazenado sob refrigeração.
Hospitais que atendem pacientes com trauma grave devem possuir protocolos de hemorragia massiva (PHM) e eles variam conforme disponibilidade de recursos, sendo o uso de CF e CCP terapia ponte em centros de baixo volume/complexidade até transferência a um centro de referência de trauma.
Os autores desse estudo multicêntrico realizado no Canadá avaliaram o uso de CF e CCP comparado ao uso de PF para pacientes graves vítimas de trauma e que foi acionado PHM para avaliar se houve redução da transfusão de hemocomponentes halogênicos (HCH) nas 24 horas iniciais.

Materiais e Métodos
Foi um estudo multicêntrico tipo ensaio clínico randomizado controlado em paralelo de avaliação de superioridade realizado em 6 centros de trauma de nível I no Canadá, entre abril de 2021 e fevereiro de 2023.
Os critérios de inclusão foram pacientes maiores que 16 anos com injúria traumática e acionamento de PHM até 1 hora após admissão. Foram excluídos pacientes que receberam mais de 2 unidades de concentrados de hemácias (CH) antes da admissão hospitalar ou antes da ativação do PHM, mais de 3 horas do momento da lesão traumática, ferimentos penetrantes em cérebro com Escala de Coma de Glasgow de 3, uso de anticoagulantes nos últimos 7 dias, discrasia sanguínea, gestação ou recusa a transfusão de hemoderivados.
Os pacientes foram randomizados em dois grupos: grupo intervenção, que recebeu CF e CCP, e grupo controle, que recebeu PF. Os pacientes foram estratificados por centro de atendimento e a alocação em cada grupo de intervenção foi cega.
O grupo intervenção recebeu 4g de CF (Fibryga; Octapharma) e 2000 UI de CCP (Octaplex; Octapharma) nos primeiros e segundos packs do PHM. O grupo controle recebeu 4 unidades de PF em ambos os packs.
O desfecho primário avaliado foi a mediana de número de HCH transfundidos nas primeiras 24 horas e secundário foi a mediana de HCH transfundidos nas primeiras 24 horas, excluindo unidades de PF nos 2 primeiros packs de PHM. O período de análise foi 28 dias.
Outros desfechos secundários incluíram dias fora do hospital até 28 dias, mortalidade em 24 horas e até 28 dias, tempo até óbito em 28 dias, incidência de eventos tromboembólicos (ETEs), dias livres de ventilação mecânica, tempo de internação em UTI, falência de múltiplos órgãos e síndrome compartimental abdominal e de membros.
Resultados
Foram randomizados 217 pacientes, sendo 107 no grupo intervenção e 110 no grupo controle. No grupo intervenção, o PHM foi aberto e a medicação administrada a 66 (65,5%) pacientes e no grupo controle o PF foi administrado a 71 pacientes (64,5%), resultando em um total de 137 pacientes incluídos na análise primária. A análise foi feita como modified intention-to-treat mITT, pois é frequente no contexto de atendimento de trauma ser ativado MHP e rapidamente ser desativado.
O estudo foi interrompido devido a uma análise interina evidenciar que o poder do estudo seria insuficiente, exigindo um tamanho de amostra maior e impraticável para determinar superioridade da intervenção.
Os 137 pacientes da análise primária eram na maioria homens (81%), com mediana de idade de 38 anos [intervalo interquartil (IQR) 29-55 anos] e 95 (69,3%) com mecanismo de trauma fechado. A mediana do Injury Severity Score (ISS) foi de 29 (IQR 19-43), sendo de 33[18-45] no grupo CF+CCP e de 29 [22-43] no grupo PF e 95 (69,3%). Coagulopatia foi identificada em 36 pacientes (54,5%) no grupo intervenção e 37 (52,1%) no grupo controle.
Não houve diferença estatística para o desfecho primário do estudo, a mediana de número de transfusões de HCH nas primeiras 24 horas foi de 20,8 (95% IC, 16,7-25,9) unidades no grupo intervenção versus 23,8 unidades (95% IC, 19,2-29,4) no grupo controle.
O estudo também não identificou diferença na mortalidade em 24 horas (5 [7,6%] vs 12 [16,9%]; P = 0,24), no tempo até o óbito e nem na mortalidade por todas as causas em 28 dias (HR 0,62 [IC 95%, 0,26–1,40; P = 0,26] e 0,64 [IC 95%, 0,30–1,37; P = 0,25], respectivamente). Em relação a ETEs, ocorreram 14 (21,2%) no grupo intervenção e 10 (14,1%) no grupo controle (diferença de risco, 7,13; IC 95%, -5,89 a 20,65; P =0,37).
Discussão
O racional desse estudo multi-institucional realizado no Canadá, país com sistema de saúde pública bastante organizado, com rígidos protocolos assistências e rigoroso controle de gastos, foi testar o uso preemptivo de fatores de coagulação para esses pacientes e avaliar sua eficácia clínica em comparação ao PF, que é mais caro, menos disponível e de logística mais complexa.
A análise estatística não encontrou eficácia na utilização de doses fixas de concentrados desses fatores na redução da necessidade de transfusão de HCH nas primeiras 24 horas de atendimento de pacientes vítimas de trauma e com abertura de PHM. Também não houve diferenças nos desfechos secundários do estudo, incluindo ocorrência de ETE.
Houve necessidade de encerrar o estudo precocemente devido ao seu baixo poder estatístico, inferior à 25%, evidenciando a dificuldade de amostragem necessária para responder a essa dúvida através de um ensaio clínico randomizado, o que pode servir de ponto de partida para o desenho de um novo estudo contando com mais centros para aumento da população estudada.
Mensagem prática
A mensagem prática desse estudo é que vítimas de trauma grave são um desafio para os serviços de pronto-atendimento “porta aberta” no mundo todo e nem todos os serviços são centro de referência em trauma ou contam com todos os recursos materiais e humanos para o atendimento integral.
Para esses pacientes cada segundo conta e a assertividade das condutas adotadas no atendimento inicial são determinantes para um melhor prognóstico, portanto a busca por condutas e medicações que otimizem o desfecho desses pacientes é totalmente justificada.
Autoria

Gustavo Borges Manta
Cirurgião de Cabeça e Pescoço pela Sociedade Brasileira de Cirurgia de Cabeça e Pescoço e Associação Médica Brasileira • Assistente de Cirurgia de Cabeça e Pescoço no Instituto do Câncer do Estado de São Paulo - ICESP - Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo - HCFMUSP e no Hospital do Servidor Público Estadual HSPE-IAMSPE • Médico cirurgião do Hospital Israelita Albert Einstein - HIAE • Pós-Graduação pelo Hospital Israelita Albert Einstein em Cirurgia Robótica em Cirurgia de Cabeça e Pescoço e Pós-Graduação em Gestão da Qualidade e Segurança do Paciente em Saúde.
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