A Hidrocefalia de Pressão Normal Idiopática (HPNi) é uma condição que afeta principalmente idosos e cursa com a tríade de alteração da marcha, declínio cognitivo e incontinência urinária. Apesar de potencialmente tratável, o diagnóstico é frequentemente confundido com doenças neurodegenerativas.
O tratamento padrão é a derivação do líquido cefalorraquidiano (LCR), mas ainda existem dúvidas sobre quais pacientes realmente se beneficiam e qual é o perfil de segurança do procedimento.
Um estudo recente da Cochrane Database of Systematic Reviews (2024) avaliou a eficácia e os riscos do shunt em HPNi, reunindo os principais ensaios clínicos disponíveis para oferecer evidência de maior qualidade.

Metodologia
A revisão incluiu quatro ensaios clínicos randomizados, totalizando 140 pacientes com idade média de 75 anos. Os estudos compararam diferentes modalidades de derivação liquórica — ventriculoperitoneal ou lomboperitoneal — em pacientes com HPNi diagnosticada por critérios clínicos e radiológicos. Os grupos controle consistiram em pacientes não submetidos à derivação ou com válvula inicialmente inativa, em desenhos de ensaio do tipo “cross-over”. Os principais desfechos avaliados foram marcha, funcionalidade global, cognição, qualidade de vida e ocorrência de eventos adversos, com análise de curto prazo, até 12 meses após a intervenção.
Resultados
Os resultados demonstraram que a derivação liquórica provavelmente melhora a velocidade da marcha e reduz a incapacidade funcional no curto prazo, com evidência de certeza moderada. O efeito foi estatisticamente significativo, com uma diferença padronizada de média de 0,62 (IC95% 0,24 a 0,99) em velocidade de marcha entre os grupos, e um risco relativo de 2,08 (IC95% 1,31 a 3,31) para alcançar independência funcional, sugerindo que a cirurgia praticamente dobra a chance de melhora clínica nesse desfecho.
Em contrapartida, os efeitos sobre a cognição foram incertos: dois ensaios com 104 pacientes mostraram apenas um possível benefício discreto (SMD 0,35; IC95% –0,04 a 0,74), mas a certeza da evidência foi considerada muito baixa. A segurança do procedimento também merece atenção.
Embora não tenham sido registradas mortes atribuídas à derivação, complicações ocorreram em cerca de 41% dos pacientes operados contra apenas 2% no grupo controle, incluindo infecções, mau funcionamento de cateter e hematomas subdurais. Apesar disso, a necessidade de reoperação foi relativamente baixa, próxima de 9%. Um dado importante é que nenhum dos estudos avaliou diretamente a qualidade de vida, deixando uma lacuna relevante para a prática clínica.
Limitações
Os estudos incluídos têm pequeno tamanho amostral, seguimento curto (≤ 12 meses) e heterogeneidade nos critérios de seleção de pacientes. Não há dados robustos sobre desfechos cognitivos, qualidade de vida e segurança em longo prazo.
Mensagem prática
- A derivação liquórica é eficaz para melhorar a marcha e a funcionalidade no curto prazo, com evidência de certeza moderada.
- O procedimento deve ser indicado prioritariamente em pacientes cujo sintoma predominante é a alteração de marcha.
- A resposta positiva a testes de drenagem de LCR aumenta a probabilidade de sucesso cirúrgico e deve guiar a seleção de candidatos.
- Os benefícios sobre cognição e qualidade de vida permanecem incertos, devendo ser discutidos claramente com paciente e familiares.
- As complicações são frequentes, mas a mortalidade é nula e a taxa de reoperação é relativamente baixa (~9%).
- A decisão terapêutica deve ser individualizada, ponderando riscos e benefícios em cada caso, sempre com seguimento clínico rigoroso.
Do ponto de vista prático, essa revisão reafirma o cerne da neurocirurgia contemporânea: o sucesso não reside apenas na técnica, mas sobretudo na escolha do paciente certo. A derivação liquórica, longe de ser um mero ato mecânico, é uma intervenção que, quando bem indicada, devolve ao idoso a marcha, a autonomia e a dignidade perdidas.
Os achados reforçam que pacientes com distúrbio de marcha predominante e resposta favorável à drenagem do líquor são os que mais se beneficiam, evidenciando que o julgamento clínico apurado continua sendo a bússola do neurocirurgião.
Mais do que provar a eficácia do shunt, o estudo aponta o caminho da próxima fronteira: compreender para quem ele realmente funciona melhor e como traduzir esse benefício em qualidade de vida e função cognitiva mensurável.
É tempo de incluir desfechos de qualidade de vida e parâmetros cognitivos nos estudos futuros. A questão já não é se o shunt funciona, e sim para quem ele funciona melhor e como podemos potencializar esse ganho. Em um cenário de incertezas diagnósticas, a derivação continua sendo uma opção segura, desde que sustentada por raciocínio clínico sólido e indicação precisa.
Em última análise, esta revisão não traz uma revolução, mas uma reafirmação: a neurocirurgia de excelência se faz com técnica refinada, ciência rigorosa e discernimento humano. Certamente essa tríade é a que transforma resultados em recomeços.
Autoria

Luiz Anderson Bevilaqua Bandeira
Neurocirurgião ⦁ Doutorando em Saúde Pública pela Universidade Federal do Ceará (UFC) ⦁ Mestre em Tecnologia Minimamente Invasiva e Simulação na Saúde pela UniChristus ⦁ Especializações em Saúde da Família, Direito Médico e Intervenção em Neuropediatria ⦁ Especialista em intervenções complexas e inovação em saúde ⦁ Desenvolvedor do simulador virtual XNeuro 1.0, pioneiro no treinamento sobre pressão intracraniana ⦁ Docente em neurocirurgia, neurofisiologia e neuroanatomia ⦁ Preceptor de residência médica em Neurocirurgia ⦁ Revisor científico
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