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No início de 2018 a European Society of Cardiology (ESC) publicou uma diretriz sobre uso de antiarrítmicos na Cardiologia. Como o assunto é árido, fizemos um compilado voltado para o clínico, o intensivista e o cardiologista geral. Quem estiver lendo e for especialista em arritmia, sugiro ir direto ao artigo original. Aqui priorizamos o aspecto prático, à beira do leito, e com as drogas disponíveis no Brasil.
O uso de antiarrítmicos tem um de três objetivos principais:
- Controle de FC e alívio sintomático.
- Reversão da arritmia.
- Suporte a pacientes com dispositivo eletrônico, como desfibriladores implantáveis ou marcapasso.
Didaticamente, os antiarrítmicos (AA) são classificados conforme proposto por Singh-Vaughan-Williams e descrito na tabela 1. A grande crítica a esta classificação é ser antiga, e muitos fármacos novos têm dificuldade de se “adaptar”, além de estar mais baseada na ação farmacológica do que no efeito clínico. Drogas modernas, como a amiodarona e a ranolazina, podem ter mais de uma ação local, isto é, podem alterar mais de uma função celular, e por isso a classificação rígida não se adapta tão bem.
Tabela 1: classificação de Singh-Vaughan-Williams.
Classe | Mecanismo | Droga |
I* | Bloqueadores dos canais de sódio | IA: quinidina, procainamida, disopiramida
IB: lidocaína, fenitoína, metilxantina IC: flecainida, propafenona |
II | Betabloqueadores | Propranolol, metoprolol |
III | Bloqueadores dos canais de potássio | Amiodarona, bretílio, sotalol |
IV | Bloqueadores dos canais de cálcio | Diltiazem, verapamil |
V | Outras ações | Adenosina, atropina, digoxina, ivabradina, ranolazina |
*A classe I é subdividida conforme afinidade e intensidade do bloqueio pela droga.
Na vida real, qual o grande problema do uso dos AA? Toxicidade e interação medicamentosa. E a toxicidade se apresenta como faca de dois gumes: a mesma droga que trata uma arritmia, pode provocar outra, o chamado efeito pró-arrítmico. Os dois mecanismos mais comuns são bradicardia e prolongamento do intervalo QT. Já a interação medicamentosa ocorre principalmente pela família do citocromo P450. Por isso, esteja de olho no uso associado de AA com:
- Antibióticos (macrolídeos) e imidazólicos (cetoconazol, itraconazol e voriconazol)
- Antipsicóticos: clorpromazina e haloperidol
- Antidepressivos: ISRS, como fluoxetina e sertralina
- Anticonvulsivantes: carbamazepina e fenitoína
- Varfarina
- Digoxina
Além disso, determinados grupos de pacientes apresentam maior risco de toxicidade e interação:
- Idoso
- Cardiopatia estrutural de base:
- A droga mais segura é amiodarona.
- O sotalol pode ser usado em pacientes com HVE, mas não ICFER.
- Doença renal crônica (no WB você encontra o ajuste de cada droga para a função renal!):
- Esteja atento a sotalol, procainamida, quinidina, propafenona, diltiazem e verapamil, as quais necessitam de redução da dose.
- Gestante: o ideal é evitar o uso de drogas.
- Adenosina pode ser utilizada para reverter uma TSV.
- Amiodarona é contraindicada.
- Sotalol pode ser usado com cautela.
O que fazer então na prática? Em pacientes sujeitos a tais interações medicamentosas ou nos grupos de risco, se você optar por usar um AA, comece com dose baixa, de preferência ainda no hospital. Faça um ECG e um Holter antes e após o início do tratamento. O efeito pró-arrítmico ocorre nos primeiros dias do início da droga.
Quando suspender a medicação?
- Bradicardia sintomática
- QTc > 500 ms
- Aumento QT pós droga > 25%
- Propafenona: QRS > 120-150 ms
Agora, vamos falar das indicações dos AA nos cenários clínicos mais comuns. A ideia não é discutir cada patologia, mas sim uma orientação para uso dos AA. E lembrem: em todas as taquiarritmias, se houver instabilidade, o tratamento é cardioversão elétrica sincronizada!
- Procurar cardiopatia estrutural → ECG e ECO. Dependendo do cenário, inclua avaliação de isquemia (sintomas no esforço, muitos fatores de risco etc).
- Avaliar “triggers” → função renal, eletrólitos, dor, infecção, inflamação.
Peri-operatório
Arritmias supraventriculares: são as mais comuns, e respondem aos betabloqueadores, que devem ser primeira opção. Guarde a amiodarona para doentes mais sintomáticos ou que não revertem após 24h.
- Os betabloqueadores podem ser iniciados antes da cirurgia e mantidos como profilaxia.
- O sulfato de magnésio pode ser usado como adjuvante. Aliás, em vários trechos da diretriz eles destacam o uso do magnésio e importância de manter potássio “super normal” de 4,0 a 5,0 mEq/L.
Arritmias ventriculares: a droga de escolha é amiodarona, sendo lidocaína o plano B. A exceção é o Torsades de pointes, no qual o sulfato de magnésio é a escolha número 1.
Extra-Sístoles Ventriculares (ESV) e Taquicardia Ventricular Não-Sustentada (TVNS)
- Não é necessário tratamento, exceto no doente muito sintomático, em geral com >10% de ESV no Holter.
- A melhor opção são betabloqueadores, sendo verapamil/diltiazem ou propafenona o plano B para ESV e amiodarona ou sotalol para TVNS.
Extra-Sístoles Supraventriculares (ESSV) e Taquicardia Atrial
- São preditores de FA.
- A taqui atrial é consequência do DPOC e só necessita de tratamento se muito sintomática.
- Opções no paciente muito sintomático: betabloqueadores → propafenona → sotalol ou amiodarona.
Fibrilação Atrial e Flutter Atrial
- A primeira decisão é se você optará por controle de FC (aceitando a FA crônica) ou se tentará reversão do ritmo para sinusal.
- Doentes jovens, com átrio pequeno e mais sintomáticos se beneficiam de uma estratégia de reversão do ritmo.
- Já idosos, com átrio grande e pouco sintomáticos são um grupo onde se pode aceitar a FA, mantendo uma FC de repouso de até 110 bpm.
- Lembre-se, ainda, da decisão de anticoagular, que não depende se você irá reverter ou não a FA e sim do risco de eventos tromboembólicos pelo escore ChadsVasc!
- Para cardioversão química, usamos muito a amiodarona no Brasil, mas ela é lenta e não é a mais eficaz! No exterior, orienta-se muito o uso da flecainida. A proprafenona seria nossa opção, podendo ser feita inclusive ambulatorialmente no paciente sem cardiopatia estrutural importante, a chamada “pill-in-the-pocket”. O ponto central é que nesta estratégia você deve usar um betabloqueador associado, pois ao reduzir a frequência atrial, há um risco de conduzir 1:1 para ventrículo antes da reversão, podendo levar o doente a bater a 160-180 bpm! O betabloqueador “freia” o nodo AV e evita este fenômeno.
- Para manutenção, as opções são: betabloqueadores, propafenona, sotalol e amiodarona.
- Na estratégia de aceitar a FA e controlar a FC, betabloqueadores são a melhor opção, sendo verapamil e digoxina as alternativas.
- Paciente com ICFER: betabloqueadores, digoxina e amiodarona. Os demais AA são contraindicados!
“TaquiSupra” (TSV)
- Pode ser nodal ou por via acessória. O ponto central é identificar se a via acessória conduz do átrio para o ventrículo, pois neste caso há risco de uma FA desencadear uma FV. Se você observar uma taquicardia de complexo largo e ficar na dúvida se é supra com aberrância ou TV, trate como TV, usando amiodarona.
- O tratamento mais eficaz é a ablação. As medicações entram para alívio do sintoma até o procedimento.
- Na crise aguda, ouça nosso podcast sobre TSV na emergência.
- Na prevenção, betabloqueadores, verapamil e digoxina são as melhores opções.
Taquicardia Ventricular
- A taquicardia ventricular sustentada é considerada uma morte súbita abortada. Lembre sempre de avaliar cardiopatia estrutural e fator precipitante (trigger)!
- Em casos selecionados, onde haja uma área de cicatriz evidente e um padrão monomórfico, a ablação pode ser o tratamento definitivo, mas na maioria dos pacientes, uma TV revertida = implante CDI.
- Entre o evento e o implante do CDI, amiodarona (1ª escolha), lidocaína e procainamida são as drogas de “prevenção” a serem utilizadas.
Observações Finais
- Drogas das classes IA e IC, incluindo propafenona, podem piorar a sensibilidade miocárdica ao marcapasso, dificultando sua captura.
- A reposição de sódio ou bicarbonato de sódio pode ajudar na toxicidade por AA classe I.
- Já o paciente com QT prolongado e bradicardia (IA ou III) se beneficia de sulfato de magnésio e aumento da FC por isoproterenol ou marcapasso.
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Referências:
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