Essa pergunta tem dado nós nas cabeças de muitos médicos ao longo da atual pandemia. Já é sabido que o novo coronavírus (SARS-CoV-2) causa infecções particularmente graves em duas condições especiais: idosos e pacientes portadores de comorbidades. Sem contar, é claro, que frequentemente essas duas condições acontecem simultaneamente.
Dentre as comorbidades relatadas como fatores de risco, a hipertensão arterial sistêmica (HAS) é provavelmente uma das mais comuns. Muitos desses pacientes usam inibidores da enzima conversora de angiotensina (IECA) e bloqueadores dos receptores de angiotensina (BRA) como tratamento anti-hipertensivo.
E é aí que a pergunta do título surgiu. Sabe-se que o SARS-CoV-2, assim como seu antecessor (o vírus da síndrome respiratória aguda grave, SARS-CoV), usa a enzima conversora de angiotensina 2 (ECA-2) como meio para infectar células-alvo. Essa enzima, ao contrário da ECA-1, tem função de inibir o sistema renina-angiotensina-aldosterona (SRAA) e sua produção é estimulada pelo uso de IECA e BRA.
Logo, surge a dúvida: usar esses medicamentos poderia ser uma forma de facilitar a infecção viral?
No começo da pandemia, atentando-se para esse possível elo fisiopatológico, vários estudiosos sugeriram que, talvez, o uso dos bloqueadores do SRAA seria justamente o responsável pela má evolução de pacientes hipertensos infectados com o novo coronavírus. Tanto que, em alguns locais, a suspensão do uso dessas classes de medicamentos chegou a ser sugerida como profilaxia para formas graves da Covid-19.
Para tentar esclarecer melhor essa dúvida, o New England Journal of Medicine publicou um artigo de revisão no último dia 31. É importante lembrar que estudos envolvendo do SARS-CoV-2 ainda são muito escassos, no momento, e as evidências vêm mudando diariamente. Porém, o artigo em questão ajuda a tomar decisões quando o dilema “suspendo ou não os IECA e BRA?” surgir no dia a dia.
Bloqueadores do SRAA e a ECA-2 e Covid-19
A enzima ECA-2 é amplamente distribuída pelos diferentes sistemas e existe tanto na forma solúvel quanto na forma fixa, ligada à membrana plasmática de células alvo (essa última é a forma clinicamente mais relevante). Sua função é degradar a angiotensina II, contrarregulando a ativação do SRAA e, com isso, diminuindo seus efeitos de vasoconstrição, retenção de sódio e fibrose tecidual. O próprio pulmão possui seus exemplares de ECA-2 tecidual.
Por mais que, em geral, espera-se que IECA e BRA sejam capazes de aumentar a expressão de ECA-2, as evidências nesse sentido ainda são poucas e incertas. Estudos tanto com animais quanto humanos têm mostrado, inclusive, resultados conflitantes nesse aspecto.
Alguns estudos com captopril, por exemplo, não mostraram nenhuma alteração nos níveis séricos dos produtos da ECA-2 após o uso inicial do medicamento. Entretanto, após o uso continuado por 6 meses, esses mesmos produtos encontravam-se em maior quantidade do soro, sugerindo maior atividade da ECA-2.
Um estudo japonês com pacientes hipertensos mostrou que os níveis urinários de ECA-2 (e, por extensão, os níveis séricos e teciduais também) aumentavam após o uso a longo prazo de olmesartana (o que não era observado em pacientes-controle). Porém, o mesmo efeito não ocorreu no uso de enalapril ou outros BRA.
Em outras pesquisas, os níveis de RNA correspondente à ECA-2 estavam aumentados no intestino de indivíduos com uso prévio de IECA, porém o mesmo não foi observado em quem usava BRA. Além disso, não existem estudos sobre bloqueadores do SRAA e a atividade pulmonar da ECA-2.
O que esses estudos mostram é que os estudos in vitro e com animais, relativos a esse possível efeito biológico dos IECA/BRA, não podem mesmo ser extrapolados para os efeitos em humanos e que a cascata do SRAA é mais complexa do inicialmente se imaginava. Da mesma forma, os efeitos sobre a ECA-2 claramente variam entre IECA e BRA e mesmo entre medicamentos de uma mesma classe farmacológica, não sendo possível tirar conclusões mais gerais.
Além disso, não há pesquisas que sustentem a hipótese de que o aumento na expressão e atividade da ECA-2, através do uso desses medicamentos, facilitaria a infecção pelo SARS-CoV-2.
Os IECA e BRA podem ter benefícios na Covid-19?
Apesar de o raciocínio mais intuitivo nos levar a concluir, então, que o uso de inibidores do SRAA pode deixar a pessoa mais vulnerável ao coronavírus, outros mecanismos fisiopatológicos dizem o contrário.
Algo que foi observado sobre o SARS-CoV, e também sobre o SARS-CoV-2, é que a infecção viral leva, em um segundo momento, à queda na atividade da ECA-2. Muitos estudiosos sugerem, inclusive, que esse seja um dos principais mecanismos de agressão tecidual dos vírus: uma vez inibida a ECA-2, o SRAA sairia do controle e os níveis excessivos de angiotensina II desencadeariam lesões teciduais tanto a nível local quanto sistêmico.
No pulmão, especificamente, a hiperatividade da angiotensina II facilita a infiltração tecidual e a penetração de toxinas bacterianas no tecido. Em estudos com lesão pulmonar aguda induzida pelas proteínas do SARS-CoV-1, por exemplo, o grau de inflamação tecidual foi atenuado pelo uso de bloqueadores do SRAA.
Já estudos com portadores da própria Covid-19 mostraram que esses pacientes têm níveis séricos de angiotensina II aumentados e, em estudos pré-clínicos, a administração de ECA-2 recombinante aparentemente reduziu os efeitos pulmonares devastadores dessa e de outras infecções virais.
Leia também: Covid-19: modulação de ACE2 pode explicar a origem dos efeitos extrapulmonares?
Além disso, é claro o efeito da Covid-19 sobre a hemodinâmica pulmonar. Muitos pacientes apresentam níveis de enzimas cardíacas aumentados e sabe-se que muitos vírus são, de fato, cardiotrópicos. Independentemente da ação direta do vírus sobre o miocárdio, quantidades excessivas de angiotensina II circulante são cardiotóxicas e o uso de IECA/BRA nos casos de miocardite viral aguda é um importante elemento para controlar as sequelas cardíacas que se tornam, futuramente, insuficiência cardíaca crônica.
Todas essas evidências têm estimulado pesquisadores a estudar o possível uso de ECA-2 recombinante como forma de tratar e prevenir formas graves da Covid-19.
Devo ou não suspender IECA/BRA em pacientes com Covid-19?
Pesando todas essas evidências, chegamos à seguinte conclusão: o uso dos IECA/BRA não parece agravar o quadro clínico de pacientes com Covid-19 (pelo menos, não há evidências comprovando que essas drogas aumentariam a capacidade de infecção do vírus). Ao mesmo tempo, a falência hemodinâmica e lesões teciduais, inclusive cardíacas, secundárias à hiperativação do SRAA parecem ser elementos centrais na fisiopatologia da infecção grave pelo SARS-CoV-2.
Em outras palavras, o efeito protetor dos inibidores de SRAA parecem sobrepor, pelo menos por enquanto, os riscos associados a seu uso no contexto da Covid-19.
Isso não é evidência suficiente para sugerir a prescrição desses medicamentos para esses pacientes. Porém, é evidência o suficiente para manter o uso em pacientes que tomavam essas medicações antes, em especial naqueles portadores de insuficiência cardíaca.
Pacientes que usam IECA/BRA para hipertensão toleram melhor a suspensão desses fármacos, apesar de ser clinicamente difícil substituí-los por outras classes de anti-hipertensivos (especialmente no cenário ambulatorial). Os portadores de insuficiência cardíaca, ao contrário, demonstram descompensação clínica evidente na suspensão desses medicamentes, inclusive em pacientes infectados pelo SARS-CoV-2 (o que pode ser potencialmente fatal).
Logo, é importante lembrar que, em períodos de incertezas como esse, vale a pena continuar seguindo o que é consolidado por evidências, a despeito do que ainda é apenas hipótese.
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Referências bibliográficas:
- VADUGANATHAN, Muthiah; VARDENY, Orly; MICHEL, Thomas; MCMURRAY, John J.v.; PFEFFER, Marc A.; SOLOMON, Scott D.. Renin–Angiotensin–Aldosterone System Inhibitors in Patients with Covid-19. New England Journal Of Medicine, [s.l.], p.1-7, 30 mar. 2020. Massachusetts Medical Society. http://dx.doi.org/10.1056/nejmsr2005760.
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